Gilson Schwartz colunista da Folha de S.Paulo
As palavras "conhecimento" e "descoberta" guardam importante familiaridade. A história do conhecimento praticamente se confunde com a das "descobertas". Em alguns casos, de modo bastante literal: a descoberta do "Novo Mundo" esteve associada ao avanço da ciência e ao surgimento do moderno Estado de Direito.
A superação da fé que colocava a Terra no centro do Universo revelou conexões entre descobrir e conhecer. O avanço da astronomia conjugada à navegação deu aos primeiros Estados nacionais da Era Moderna a sustentação financeira e militar, pois os mares "nunca dantes navegados" tornaram-se também um palco privilegiado das guerras coloniais. O conhecimento de mapas e bússolas, no entanto, era a condição necessária para operar nas colônias as garruchas e os canhões.
O caráter ambíguo do conhecimento, para o bem e para o mal, a criação e a destruição, revela-se intensamente nos novos territórios percorridos por "navegadores" digitais. A empresa que mais caracteriza a atual etapa de desenvolvimento da economia da informação e da sociedade do conhecimento é justamente a Google (proprietária do Orkut), especializada no desenvolvimento de um "mapa da mina".
Surge, no entanto, uma contradição: se a produção do mapa pressupõe exatamente o conhecimento completo daquilo que está sendo mapeado, como produzir conhecimento, ou seja, descoberta, usando mapas? É como com terremotos: são desenvolvidas técnicas cada vez mais complexas para medir o movimento as placas tectônicas, mas é impossível prever onde e com que intensidade ocorrerá o próximo tremor.
O conhecimento da descoberta é ainda mais sutil, pois admitir algo novo exige também uma certa disposição mental e até ideológica. Para o fiel seguidor da teologia geocêntrica, Galileu Galilei era uma ameaça à sustentação da fé, não uma promessa de novas Cruzadas.
O tema é apropriado neste terceiro aniversário do ataque terrorista às torres gêmeas de Nova York. Coincide com os 350 anos de vida judaica nos EUA (parte do Novo Mundo). Em 1654, um grupo de 23 judeus saiu de Recife, expulsos com os holandeses pelas forças portuguesas. Rumaram para Nova Amsterdã, que viria a ser Nova York.
Mas o que fazia aquele grupo de judeus na terra que parecia prometida aos portugueses, descoberta por navegadores que empunhavam velas com grandes cruzes? Judeus e cristãos-novos haviam aportado na "terra brasilis" em busca de liberdades e, também porque, desde as primeiras caravelas (e já na Escola de Sagres), estavam entre os principais especialistas na produção e na utilização de mapas e bússolas. Sob o domínio holandês, a comunidade judaica em Recife passou de 2.000 almas.
O fato é que, quando o assunto é mapa, dificilmente se separa a divisão da terra de ideologia, cultura ou religião. Mais uma evidência inquietante de que o conhecimento de mapas é uma forma ambígua de orientação e uma sofisticada forma de dominação.
Gilson Schwartz, 44, economista e sociólogo, é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e diretor da Cidade do Conhecimentohttp://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u921.shtml
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